“Quanto mais privatizada e terceirizada for a Petrobrás, mais acidentes”, opina sociólogo

Entrevista

A opinião é do sociólogo Ricardo Antunes, professor da UNICAMP, um dos principais estudiosos brasileiros sobre as questões do mundo do trabalho. Autor de “Adeus ao trabalho?”, “Os sentidos do trabalho” e do recém-lançado “O continente do labor”. Nessa entrevista, exclusiva para a Federação Nacional dos Petroleiros, concedida no dia 11/2/2016, por telefone, Antunes fala sobre a morte do petroleiro Luiz Cabral, da REDUC, analisa a relação dos planos de desinvestimentos praticados pela direção da Petrobrás com o aumento do desemprego e dos acidentes de trabalho na empresa. Avalia também a atual crise da estatal e reflete sobre o papel dos sindicatos e dos movimentos sociais para a defesa da Petrobrás.

FNP – No dia 31/1 de 2016, o petroleiro Luiz Cabral, de 56 anos, morreu ao cair por um buraco, que se abriu sob ele,  no teto de um  tanque que continha resíduo de vácuo, a uma temperatura de 75 graus. A direção da Petrobrás vem praticando “desinvestimentos” constantes. A meta para o biênio 2015-2016 é “desinvestir” US$ 15,1 bilhões. A FNP, há muito, vem denunciando a relação desses planos de desinvestimentos com o aumento de desemprego (de dezembro de 2013 até junho de 2015, quase 130 mil empregados terceirizados foram demitidos) e dos acidentes no Sistema Petrobrás (69 mortes de 2010 a 2016). Pode nos ajudar a pensar sobre isso?

Ricardo Antunes – A relação entre desinvestimento, desemprego e acidentes é direta e por muitos motivos. É evidente que a crise que se abateu sobre a Petrobrás, nesse último período, tem um conjunto de fatores amplos, desde a queda brutal do preço do petróleo, até o processo de gestão da Petrobrás caracterizado por uma profunda corrupção em alguns setores que hoje estão sendo investigados. Como isso chega no mundo do trabalho? Qualquer empresa privada, pública ou mesmo mista, quando entra em crise, acentua o estressamento dos trabalhadores, a tensão fica mais aflorada, a imposição de novos ritmos e metas, tudo isso leva a uma intensificação ampliada do trabalho e do sofrimento no trabalho. Sem contar que desinvestimento sempre vai significar menos investimento em segurança e em condições adequadas de trabalho. A consequência desse conjunto, seja no setor petróleo ou no de energia elétrica, para ficarmos em dois exemplos agudos, significa aumento de adoecimentos e acidentes. Aumento de corpos carbonizados, destruídos. Um acidente como esse na REDUC pode ter suas particularidades, mas todos nós sabemos que essas mudanças no mundo gerencial que os gestores vêm fazendo, esse “salve-se quem puder” no mundo da produção, tem sido responsável pela ampliação dos acidentes e das mortes. Privatizar e terceirizar aumenta os acidentes. O sistema Petrobrás precisa recuperar sua força profissionalizando suas gestões com trabalhadores escolhidos no sistema Petrobrás pelos trabalhadores. Não é introduzindo metas de gestão privadas, entre as quais as terceirizações, que a Petrobrás irá se tornar mais produtiva e segura. Ao contrário, quanto mais privatizada e terceirizada for a Petrobrás, mais acidentes. Os trabalhadores e trabalhadoras sentem que eles podem ser dispensados, machucados e mesmo responsabilizados por uma crise pela qual não são responsáveis.

FNP – Luiz Cabral, o petroleiro morto na REDUC, era  concursado, portanto, “primeirizado” da Petrobrás. Mas sabemos que a grande maioria dos acidentes envolve os trabalhadores terceirizados. Há muito tempo você estuda as relações de trabalho, inclusive na Petrobrás. Algum destaque nessa trajetória?

Ricardo Antunes – Sim, perceber que quanto mais privatização, mais riscos de acidentes de trabalho. Lembro que nas minhas primeiras pesquisas feitas na Petrobrás, há 20 anos, a empresa tinha mais trabalhadores efetivos do que terceirizados, e, também havia mais direitos consolidados. Hoje, além dos direitos terem sido reduzidos para os novos concursados, o percentual de terceirizados subiu imensamente, chegando a mais de 80% da mão de obra da empresa. E,  quanto maior o volume de terceirização, maior o risco de acidentes. Os setores não terceirizados também sofrem acidentes, o estressamento atinge a todos e todas, mas, depois da crise da Petrobrás nesse último ano, basta verificar o número de terceirizados demitidos. O ritmo frenético da produção somado a ameaça de desemprego não pode fazer bem a uma empresa e a seus trabalhadores e trabalhadoras. Eu nunca esqueci, por exemplo, um depoimento dado, há 20 anos, por um petroleiro terceirizado, durante um debate que eu realizava entre esses trabalhadores.  Dizia ele, que entrou no espaço do café dos efetivos (porque naquela época havia um lugar para o café dos petroleiros estáveis e um lugar separado dos terceirizados, eu não sei se ainda é assim), mas ele entrou nesse lugar e disse: “Amanhã vocês serão como nós!”. Nunca mais esqueci essa profecia que se cumpriu.

FNP – O atual projeto de Lei 30/2015 (antigo PL 4330/04) que regulamenta a terceirização, já tramita no Senado. Quais as consequências dessas mudanças para conquistas históricas dos trabalhadores?

Ricardo Antunes – Se aprovado, esse projeto será responsável pelo retorno da escravidão no Brasil, em pleno século XXI. Quando uma empresa contrata trabalhadores terceirizados, ela estabelece uma relação interempresas. A que aluga escravos terceirizados e a que contrata escravos terceirizados, como na escravidão colonial, onde os senhores compravam escravos, através de um intermediário traficante.  Há dez, quinze anos, o  empresariado queria a terceirização da atividade meio, com argumento de que os trabalhadores primeirizados melhor fariam a atividade fim. Hoje, ele quer terceirizar a atividade fim burlando o que ele mesmo defendia há 15 anos, porque já era mentira. O empresariado sempre quis terceirizar atividade meio e fim para aumentar seus lucros à custa de direitos, menores salários, à custa da segurança e saúde dos trabalhadores. E pior, ele quer dividir politicamente a classe trabalhadora.

O patronato está conseguindo criar uma classe trabalhadora brasileira flexível, sem direitos, descartável, intensamente explorada, impossibilitada de negociar seu próprio trabalho, tornando-a  mais vulnerável e, portanto, a que mais se acidenta e morre. Embora esse PL seja ambíguo, no que se refere ao setor público, sabemos que o interesse desse núcleo da burguesia empresarial,  financeira e comercial é terceirizar as atividades meio e fim, acabando com essa disjuntiva, e mais: é terceirizar tudo, incluindo no setor público. É a profecia daquele petroleiro terceirizado que encontrei, como disse, em um debate, há muitos anos, se realizando. Ele via mais longe e alcançava com clareza o que nos acontece hoje.  A terceirização é mais uma forma de degradar e vilipendiar a Petrobrás, mesmo esta sendo uma empresa mista. É o que chamo da sociedade da terceirização total. A classe trabalhadora, através de seus sindicatos e de suas federações, não pode aceitar esse flagelo. A luta precisa ser mais agressiva, precisa ser, inclusive, por tornar o que foi privatizado, público, outra vez. Tomar de volta o que foi tirado do povo. É preciso infernizar o Senado no dia dessa votação fazendo, inclusive, um dia de paralisação geral da classe trabalhadora.

FNP – Quando falamos em acidentes ligados aos aumentos das terceirizações e privatizações das empresas brasileiras, nos referimos também aos acidentes ambientais como a recente tragédia de Mariana. Sabemos que 50% da Samarco é da Vale (ex-Vale do Rio Doce) e ex- empresa pública.

Ricardo Antunes – Exato. Enquanto a Vale era pública não havia essa devastação ou tragédias desse porte, inclusive, houve um novo vazamento na barragem, há poucas semanas, em Minas, que pode, mais uma vez, afetar a região. Mesmo a Petrobrás, quanto mais privatizada, mais riscos de causar danos ambientais. Tudo isso tem a ver com a terceirização e a precarização  do trabalho e com as privatizações de nossas empresas. Portanto, não nos faltam motivos para afirmar que o PL 30/2015, que está no Senado, precisa ser recusado.

FNP –  Os trabalhadores enfrentam uma série de ataques neoliberais em Projetos de Lei que tramitam no Senado. Um deles, o 131/2015, de  José Serra (PSDB), quer retirar da Lei, a obrigatoriedade de que a Petrobrás seja a operadora única do pré-sal.  Outro projeto, também tucano, o PLS 555/2015, quer alterar os estatutos das empresas públicas, bem como as de economia mista, transformando-as em sociedades anônimas. Você tem uma avaliação sobre esse momento?

Ricardo Antunes – A Petrobrás tem uma qualificação técnica acumulada, ao longo de décadas. Ninguém faz esse trabalho, incluindo as pesquisas que o envolvem, como petroleiros e petroleiras fazem. É por isso que, inclusive, a escolha de seus gestores não pode ser por indicação política, ela deve ser feita pelos trabalhadores e trabalhadoras da Petrobrás. Esta empresa precisa resgatar seu princípio de Res-pública (expressão latina que significa literalmente “coisa do povo”, “coisa pública”) e isso é vital. Se os governos do PT foram incapazes de retomar o que foi tomado pelas privatizações, o que podemos esperar do tucanato? O pior ainda. Ou seja, a destruição de tudo o que foi criado pelo povo brasileiro. A definição do tucano, no dicionário  Aurélio, é espetacular: “tucanos são aves coloridas, com bicos coloridos e cumpridos, vivem em bandos e gostam de pilhar em ninhos alheios”. É o que o tucanato gosta de fazer, privatizar e pilhar em ninhos alheios. É para isso que serve o Serra, seu projeto e as multinacionais. Ou seja para pilhar, sem investimento algum, sem qualquer esforço, o que petroleiros e petroleiras produzem. É para isso que serve o tucanato e todos os seus projetos neoliberais. Outros virão e não podemos permitir qualquer um deles.

FNP – ­Outra política implementada pela Petrobrás, e que faz parte de sua profunda e radical privatização, é a venda de ativos que estão em plena operação. De acordo com Aldemir  Bendine, presidente da empresa, essa política continuará a todo vapor. Quase 50% da Gaspetro foi vendida e, em recente entrevista, Bendine não descartou a venda da Transpetro. Qua análises podemos fazer sobre essas medidas para a sociedade brasileira e para petroleiros e petroleiras particularmente?

Ricardo Antunes – É evidente que não será privatizando a Petrobrás que a crise da Petrobrás será resolvida. O fatiamento e a venda dos ativos da Petrobrás nos fazem perder um patrimônio que não é do diretor da Petrobrás. O presidente da Petrobrás não é o dono da empresa, como ela também nunca foi de FHC, Lula ou Dilma, não é de qualquer governo. A Petrobrás é do povo brasileiro e a população brasileira não quer privatizar a Petrobrás. A população brasileira quer extirpar a corrupção, mas sem despedaçar e privatizar a Petrobrás. Caso essa privatização não seja interrompida, a Petrobrás será saqueada por grandes capitais fora do país. A crise da Petrobrás só pode ser resolvida se enfrentarmos essa gestão privada e privatizante da empresa, se extirparmos seus núcleos de corrupção e se resgatarmos seu sentido de coisa pública imediatamente. Por exemplo, não é admissível que o presidente da Petrobrás seja alguém sem a menor história com a estatal e que foi colocado ali apenas para fatiar, desvalorizar e vender a maior empresa brasileira.

FNP – ­ Um juiz americano negou pedido da Petrobrás e vai permitir que investidores que aplicaram em bônus e em ações processem a estatal em grupo. A alegação é que a Petrobrás não teria divulgado corretamente informações sobre a corrupção na empresa e, quando a Lava Jato trouxe tudo à tona, os papéis da companhia tiveram forte queda no Brasil e no exterior. Com mais prejuízos, o cenário de crise, recessão, desinvestimento e, portanto, mais precarização no trabalho tende a aumentar?

Ricardo Antunes – Os petroleiros e petroleiras têm uma história de resistência. Seu desafio também é imenso atualmente e por que? Porque a Petrobrás sofre imensa pressão, tanto interna para sua privatização, como é a proposta de Serra e outros, como sofre também pressão e ataques externos, como esses, vindos de Nova York. Precisamos repetir incansavelmente que o patrimônio da Petrobrás não é seu presidente ou seus diretores, não é o governo. Os petroleiros e petroleiras é que são o patrimônio da empresa. A Petrobrás é do povo brasileiro e só o povo brasileiro pode impedir que a Petrobrás seja destruída e vilipendiada, seja aqui ou em países cuja ganância só quer lucrar com tudo isso. Os sindicatos precisam ser mais fortes do que nunca.

FNP – Os protestos de junho de 2013 tiveram características multifacetadas e foram muito importantes. Por outro lado essa insatisfação popular não consegue ter consequência em termos eleitorais porque, em geral, são eleitos e reeleitos candidatos ligados justamente aos projetos combatidos pelas manifestações. Outra característica é a rejeição aos partidos políticos. Bandeiras são arrancadas das mãos de militantes e muitos chegam a ser agredidos. Como avaliar esse quadro?

Ricardo Antunes – Há uma crise profunda de representação. Se a eleição não fosse obrigatória no Brasil, provavelmente mais de 50% da população não votariam. O desencanto é enorme. Mudam prefeitos, governos e presidentes, mas, em geral, mudanças profundas não acontecem. Não digo que muitas mudanças parciais e positivas não ocorreram, mas falo de mudanças estruturais. Só com mudanças estruturais poderíamos ter evitado o quadro atual. Nunca o Parlamento brasileiro esteve em uma situação tão degradada sendo, provavelmente, a instituição mais odiada no Brasil. Outra coisa fundamental para nos ajudar a pensar a realidade brasileira, hoje, é que também houve uma politização da direita em nosso país. No passado, a direita não falava que era direita. Hoje ela se orgulha de ser direita. A extrema direita, idem. Os fascistas e nazistas não diziam que eram fascistas e nazistas, hoje se orgulham de dizer que são fascistas e nazistas. Então, vivemos uma época de muita confusão ideológica, muita disputa entre projetos de esquerda, direita e centro. E, pior, muita gente que se dizia de esquerda, não atuou e não fez  política de esquerda e, assim, ajudou a construir esse quadro de desencantamento. Portanto, é um desafio sair desse cipoal, mas um bom caminho para os sindicatos, em especial, nesse momento, para os representantes dos petroleiros, é unificar a luta em defesa da Petrobrás, impedindo sua terceirização e privatização. Precisam convocar toda a sociedade para isso. É uma boa maneira de definir caminhos e saber quem são, de fato, nossos aliados na luta pela transformação da sociedade.

FNP  – O que podem fazer os sindicatos dos petroleiros e suas federações, em meio a esta crise e diante de gigantescos desafios?

Ricardo Antunes – Os sindicatos, como os dos petroleiros, por exemplo, conquistaram ao longo de décadas, o respeito dos trabalhadores efetivos, mas os terceirizados, pouco conhecem os sindicatos. Perceba que, se hoje, a Petrobrás tem mais terceirizados do que trabalhadores efetivos, existe uma dificuldade muito grande para a organização e a luta. Por isso, o esforço dos sindicatos e das federações, também precisa ser imenso para representar e defender esses trabalhadores terceirizados, inclusive dos acidentes que, como dissemos, atingem sim os efetivos, mas fazem mais vítimas entre os terceirizados. Isso é decisivo e não acontece do dia para noite. Só uma forte resistência dos sindicatos dos petroleiros, de suas federações, ganhando apoio da população pode enfrentar essa crise. É preciso um esforço para mostrar que o petroleiro não é corrupto e nem corruptor. O corruptor é o empresariado destrutivo. Contudo, um desafio do qual o movimento sindical não pode fugir de pensar é questionar porque esse empresariado teve esse tipo de relação tão nefasta, sim, com todos os governos, mas também com os governos petistas. Outro desafio é enfrentar mais uma característica do neoliberalismo que difunde a ideia de que o sindicato é danoso, um discurso e ideário que, muitas vezes, encontra acolhida na população. Os sindicatos e partidos precisam também fazer um esforço para reconquistar os trabalhadores que estão à margem dos sindicatos e partidos e muitos desses trabalhadores participaram dos protestos de junho de 2013, sobre o qual falamos há pouco. Sair dessa enrascada é insistir em construir uma alternativa para os trabalhadores e trabalhadoras de fato e de verdade.

Fonte: FNP